25/10/2021
O crescimento populacional,
a desigualdade no acesso e gastos que aumentam a cada ano são desafios na área
da saúde em todo o mundo. Para mudar esse cenário e nos preparar para o futuro,
especialistas explicam que é necessário repensar a forma como fazermos saúde.
“Em 2017, a OMS deixou claro que não temos tempo hábil para formar mais médicos
e acompanhar a demanda mundial da saúde”, disse Guilherme S. Hummel, head
mentor no eHealth Mentor Institute (EMI), durante a palestra ‘Tecnologia
associada à força de trabalho na saúde e os desafios da usabilidade’, realizada
no Congresso Nacional de Hospitais Privados (Conahp). A mesa também contou com
Eduardo Cordioli, gerente médico do Hospital Israelita Albert Einstein, Robson
Capasso, reitor associado, chefe de cirurgia do sono e professor da
Universidade de Stanford e Romeu Cortes Domingues, conselheiro Anahp,
presidente-executivo do Conselho de Administração da DASA e moderador do
debate.
O professor da Universidade de Standford trouxe dados de
pesquisas realizadas nos Estados Unidos que nos permitem traçar alguns
panoramas e conclusões, ainda que cada país tenha suas especificidades. “De
tudo o que se gasta com saúde globalmente, 78% são consumidos por apenas 18% da
população e, observando os Estados Unidos, existe uma disparidade no acesso à
saúde e não existe quem pague os gastos financeiros, que a cada ano aumentam
mais”, diz Robson Capasso.
Uma importante questão é também o crescimento populacional, que
traz impactos em diversos setores e principalmente o da saúde, uma vez que todo
individuo em algum momento da vida precisará de atendimento médico. “O déficit
de acesso da saúde no mundo é o que causa a inflação de custeio na área médica
e é um fator incontrolável até o final do século, pois não existirá um equilíbrio
entre a demanda e a oferta. Precisamos nos planejar para uma cultura em que a
função médica será mais de instruir e educar, do que de cuidador, pois
precisamos que os indivíduos sejam mais independentes e conheçam a saúde
básica”, complementa Guilherme Hummel.
Sobre os gastos na área da saúde, é possível traçar uma relação
entre os países que gastam mais e o modelo de gestão utilizado. “Em países como
França, Inglaterra e Alemanha, até os 65 anos de idade se gasta mais em saúde
por pessoa do que nos Estados Unidos e, ainda assim, estes têm um gasto
reduzido pela metade ao compararmos com o último país. A partir disso, vemos
que esses países da Europa são geridos a partir de uma cultura preventiva e não
reativa, mostrando que a medicina preventiva é capaz de detectar fatores de
risco antes de um evento agudo, com isso o esforço e gastos feitos na prevenção
é menor do que os feitos após a manifestação do evento”, explica Eduardo
Cordioli.
Os palestrantes concordam que para atendermos às necessidades
globais de saúde precisaremos atuar em times multidisciplinares, com variedade
de médicos e outros profissionais, como os programadores e cientistas de dados.
Uma solução proposta foi a educação da população para desde cedo conhecermos a
saúde básica, garantindo maior independência e diminuindo a demanda na saúde.
Além disso, citaram também a importância da telemedicina nesse processo e como
os médicos precisam constantemente se educar para oferecerem atendimentos
eficazes através das tecnologias.
Pandemia mostrou que
telemedicina deve se manter como uma opção para o paciente
A pandemia trouxe de uma vez só uma série de situações novas
para a população mundial. O que para alguns setores profissionais abriu
caminhos de forma mais lenta, para a saúde, as mudanças exigiram decisões
urgentes. Foi dessa demanda que surgiram inovações capazes de mostrar caminhos
que devem se manter e outros que precisam ser desenvolvidos. O tema foi
discutido no Congresso Nacional de Hospitais Privados (Conahp), durante a
palestra ‘Como a pandemia acelerou as inovações e tecnologias em saúde’, que
teve a moderação de Fernando Ganem, diretor geral do Hospital Sírio-Libanês e a
participação de Diogo Dias, diretor clínico do Hospital Porto Dias, Joel
Formiga, country manager na MphRx e ex-coordenador de inovação digital da
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, e Marco Bego, diretor executivo do
Instituto de radiologia do InovaHC.
“A inovação começa pela necessidade do cliente, nasce da demanda
e não da tecnologia”, afirmou Joel Formiga durante sua fala no evento. Ele
atuou na linha de frente junto a outros profissionais quando a pandemia no
Brasil estava em sua pior fase. “A primeira percepção que tivemos na Secretaria
de Estado da Saúde foi que os dados precisavam ser valorizados, organizados,
turbinados e principalmente compartilhados. Ou seja, precisávamos valorizar a
informação”, conta.
Uma constatação que foi compartilhada por todos os
participantes: a aceitação de canais digitais para tratar da saúde foi uma
barreira ultrapassada por médicos e pacientes. Na opinião de todos, a
telemedicina, que teve ampla aceitação e larga utilização, já apresentou
diminuição. Mas, segundo observação de todos os profissionais, o uso da
tecnologia deve continuar acima do período anterior à pandemia.
“Os canais digitais vão se estabilizar nessa nova realidade como
os principais meios de comunicação e resolução de problemas, quando não forem
os únicos”, conta Formiga. “A telemedicina é uma ferramenta que veio para ficar
e muda o jogo para permitir o tratamento integrado. É fato que dessa primeira
imersão nessa jornada já saímos com uma série de empresas que, inclusive, vão
trabalhar apenas nessa vertical”, acrescenta Diego Dias.
Em outra frente, mas que também ganha a concordância entre os
participantes, está a organização dos dados e aplicação de inovações. “Durante
a fase mais crítica da pandemia, tínhamos quase 70 inciativas inovadoras nos
processos que adotávamos. Passada essa fase, temos 20 atualmente. Nosso maior
desafio foi fazer com quem as linguagens – tecnologia e medicina – se falassem
sem obstáculos. Hoje, percebemos que conseguimos fazer essa ponte”, finaliza
Marco Bego.
A convivência harmônica
entre o compartilhamento de dados e a privacidade é um dos maiores desafios
atuais
A Lei Geral de Proteção de Dados sancionada em 2020 apontou
quais devem ser os rumos do uso de dados no Brasil. Entretanto, ainda há uma
‘zona cinzenta’ sobre o assunto, como diz Fábio Cunha, coordenador do Grupo de
Trabalho Legal-Regulatório da Anahp e diretor Jurídico, Compliance, Relações
Governamentais e ESG na Dasa, que foi moderador da plenária ‘Governança de
dados com o avanço das inovações trazidas por novas tecnologias’, realizada no
Congresso Nacional de Hospitais Privados (Conahp). O debate contou também com a
presença de Rogéria Leoni Cruz, coordenadora do Grupo de Estudo de LGPD da
Anahp e diretora jurídica do Hospital Israelita Albert Einstein, Barbara
Ubaldi, head de digital e governança de dados da Organização para a Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OECD) e de Waldemar Ortunho Junior,
diretor-presidente da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Um dos pontos principais levantados pelos participantes foi o
conflito de interesses comerciais que ameaça o compartilhamento desses dados
entre os sistemas privado e público, por exemplo, se configurando em um
obstáculo que deixa de ser técnico. Para Barbara, o uso dos dados faz parte das
transformações digitais do mundo todo e deve ser entendido como um recurso
chave para todos os setores. “O crescimento com o uso de dados é muito mais
preciso. É essencial abrir as informações para o setor público, com esforços
combinados os resultados são melhores e as decisões mais coerentes”, afirma.
Outro obstáculo se relaciona com a cultura, ou seja, com o risco
de armazenar e o medo de ter um vazamento desses dados geram. De fato, o risco
existe, mas para o presidente da ANPD, Waldemar Ortunho Junior, “é fundamental
usar novas tecnologias mitigando esses riscos, com técnicas que vão proteger os
dados que oferecem mais atratividade ao invasor”.
Na mesma trilha, segue o ponto de vista de Rogéria Leoni Cruz.
“Lidamos com dados sensíveis e a medicina tem se inovado. Temos que dar
oportunidade para essas mudanças, mas, ao mesmo tempo, temos que lidar com a
privacidade e a segurança. Muitas organizações já estão conseguindo enxergar as
vantagens práticas de uma segurança de dados, seja por uma melhor estratégia ou
pela melhor organização e confiança do cliente. Isso aprimora a tomada de
decisões, e permite uma gestão efetiva de riscos”, conta.
“Reduzir desigualdades e
disparidades por meio da inteligência artificial é um dos principais objetivos.
Os cuidados devem chegar a todos”, diz Greg Corrado, neurocientista e
pesquisador do Google
Por trás de cada tecnologia que utilizamos hoje como a leitura
de código de barras pelo celular, decodificação de áudios em textos e os
próprios avanços nos estudos da inteligência artificial estão pessoas,
pesquisadores comprometidos a tornar a vida melhor. A inteligência artificial
está em desenvolvimento no mundo e a utilização dela para área da saúde pode
resultar em ganhos imensuráveis. Greg Corrado é neurocientista do Google e
encerrou o ciclo de palestras desta edição do Conahp e quem mediou a
apresentação foi o vice-presidente da Comissão Científica do Conahp2021,
Charles Souleyman.
De forma geral, a inteligência artificial já está na palma de
nossas mãos. Pelo celular podemos acessar o Google Fotos, por exemplo, e ver
agrupamentos e pesquisas sofisticadas de reconhecimento facial a partir de
qualquer aparelho. Outra forma de vermos a inteligência artificial sendo
aplicada é por meio da capacidade dos celulares de entenderem idiomas,
traduzirem conteúdos e aceitarem comandos somente a partir da voz humana, com
toda as variações que elas possam ter.
A inteligência artificial, segundo Greg, pode ser pensada como
útil tanto a usuários quanto a empresas. Para a maioria das ações atuais, mesmo
as repetitivas e complexas, a programação dos computadores facilita a rotina. A
parte mais profunda da inteligência artificial é que já podemos construir
máquinas capazes de aprender com os dados. Atualmente, o Google lê imagens a
partir de pixels, há softwares capazes de reconhecer qualquer discurso humano
e, ainda, traduzir falas para outros idiomas de forma quase automática. Todos
esses sistemas foram aprimorados com o tempo. Eles passaram por um processo de
aprendizagem por meio da inteligência artificial.
“Muita gente acha que a inteligência artificial é feita para
prever as coisas. Talvez fosse mais acurado dizer que a grande função dela seja
reconhecer as coisas”, afirma Greg. Os dados trabalhados pela inteligência
artificial facilitam o reconhecimento de forma intuitiva, por exemplo, de uma
categoria ou condição. A máquinas aprendem ao imitar modelos. Se quisermos
criar um sistema capaz de reconhecer imagens de gatos e cachorros, por exemplo,
precisamos dar a ela modelos básicos desses animais.
Na relação desse tipo de inteligência com a capacidade de
aprendizagem humana, a base está num método conhecido como ‘deep
learning‘. Isso é basicamente a reencarnação de uma tecnologia
chamada de redes neurais artificiais que existe desde 1980. E esse modelo se
baseia em como humanos aprendem as coisas, na forma como a capacidade humana
processa o aprendizado. Nesse modelo, cada neurotransmissor se associa a outros
formando redes artificiais ou neurais capazes de fazer com que as tarefas
programadas sejam realizadas.
“As máquinas hoje, por exemplo, podem enxergar. É possível
categorizarem imagens, localizarem e descreverem conteúdos imagéticos. Nesse
sentido, é possível que essa tecnologia seja usada para ler imagens médicas,
reconhecer deformidades, exames e facilitar a compreensão de fraturas, por
exemplo”, anuncia Greg.
Uma das medidas citadas pelo neurocientista em relação ao
trabalho desenvolvido pelo Google na área da saúde tem relação com o diabetes e
foi desenvolvido com parceiros na Índia. Na região onde o experimento foi feito
havia poucos profissionais capazes de fazerem o diagnóstico da doença através
da retina dos pacientes. Assim, máquinas foram desenvolvidas para serem capazes
de realizar um tipo de triagem diagnóstica. Foram tiradas 130 mil imagens de
retinas e, com a ajuda de profissionais, o nível de diabetes foi categorizado.
O resultado foi o desenvolvimento de um sistema capaz de verificar a doenças em
pacientes de forma bem próxima a percepção de médicos treinados.
Segunda analisa Greg, as inteligências humana e das máquinas são
complementares. Enquanto humanos são excelentes em extrapolar a partir de um
pequeno número de exemplos, as máquinas são muito eficazes fazer interpolação
dentro de muitos exemplos. Máquinas programadas com grandes quantidades de
dados históricos e humanos são melhores em eficiência analítica.
É preciso perceber que esses sistemas de inteligência
artificiais não são caixas pretas inacessíveis e cujo conteúdo interno seja
completamente desconhecido. “A gente acredita que os sistemas artificiais podem
colaborar com as pessoas da mesma forma que as pessoas colaboram entre si”, diz
o neurocientista. Esse tipo de inteligência seria capaz, inclusive de explicar
o porquê de escolher categorizar suas percepções a partir de sua programação.
“Voltando ao exemplo do diagnóstico de diabetes, por exemplo, o sistema pode
mostrar a causa pela qual escolheu categorizar a doença no indivíduo como
moderada”, afirma Greg.
Outros caminhos são possíveis para estreitar o relacionamento de
forma ainda mais próxima entre a gestão de dados e a medicina. Dentre eles
estão os processos de criação de medicamentos que utilizam dados, identificação
de erros de amostragens ou mesmo feitura de triagens. Em última instância, o
valor do uso da inteligência artificial estaria na criação de um sistema de
saúde de aprendizagem. O ideal é que cada vez que se atende um paciente, a
experiência seja melhorada para um próximo paciente. Os sistemas de machine
learning podem nos dar diretrizes importantes para aumentar a
eficácia do sistema como um todo e melhorar a experiência de quem os utiliza.
Sobre a atuação do Google na pandemia, o neurocientista
ressaltou que a empresa percebeu a importância da informação correta e que,
utilizada na hora certa, pode salvar vidas. Sobre o uso do Google no
autodiagnóstico dos usuários, Greg alertou que “apesar das ferramentas e
informações estarem disponíveis, há um jeito certo de usá-las. É complexo.
Nossa jornada na saúde é entender o papel da tecnologia e o papel que ela não é
capaz de desempenhar”, analisa o neurocientista. “Eu acredito que vai levar
muitos anos, mas, no futuro, seremos capazes de estar em um lugar onde a
tecnologia será mais utilizada, difundida e confiável. Há muito para se
caminhar, mas é possível sonhar com uma medicina preventiva em nível global,
com o apoio e o trabalho de muitas pessoas e instituições”, finaliza.
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